Em 1823, os Estados Unidos adotaram uma política de oposição ao colonialismo europeu nas Américas, chamada Doutrina Monroe. Segundo ela, novas tentativas de controle de qualquer estado independente da América do Norte ou do Sul, por parte das nações europeias, seriam vistas como “manifestações de hostilidade para com os EUA”. Entretanto, nos últimos 100 anos, o próprio governo norte-americano interveio nos processos democráticos da América Latina diversas vezes. Em alguns casos, a intervenção foi direta, isto é, envolvendo o uso de forças militares ou de agentes de inteligência dos EUA. Em outros casos, a interferência foi indireta. Ou seja, os atores locais desempenharam os papéis principais com incentivo dos EUA. Este é o caso da Operação Condor, sistema implementado na década de 1970 pelas ditaduras de direita do Cone Sul da América Latina, com inteligência e ajuda militar fornecidas pelos EUA. A operação consistia de compartilhamento de informações e da realização de sequestros, atos de tortura, execução e desaparecimento forçado de opositores políticos. Devido a sua natureza clandestina, o número exato de mortes diretamente atribuíveis à Operação Condor é extremamente controverso. A série Fuga propõe uma reflexão sobre a interferência dos EUA nos governos da América do Sul. As seis pinturas abstratas abaixo apresentam no verso um retrato – invisível a olho nu – de uma mulher com uma criança. Cada uma delas é originária de um dos países envolvidos na Operação Condor, a saber, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Brasil. O título de cada uma das pinturas – Liliana, Nalvia, María Claudia, Apolonia, Domitila e Alceri Maria – corresponde ao nome de uma mulher perseguida, torturada ou assassinada pela ditadura militar de seu país de origem.
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Liliana
Na Argentina, um golpe de Estado em 1976 iniciou a ditadura militar comandada pelo general Jorge Rafael Videla, conhecida como Processo Nacional de Reorganização, que resultou no desaparecimento de cerca de 30 mil pessoas. Tanto o golpe quanto o regime autoritário que o seguiu foram avidamente endossados e apoiados pelo governo dos EUA. O Secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, fez pelo menos uma visita oficial à Argentina durante o governo de Videla, mostrando-se, dessa maneira, conivente com seus crimes, que incluíam prisões extrajudiciais, execuções em massa, tortura, estupro, desaparecimento de presos políticos e dissidentes, além do sequestro de filhos de mulheres encarceradas por razões políticas ou engravidadas por estupro contínuo dos carcereiros.
Nalvia
O golpe de Estado perpetrado em 1973 no Chile foi uma consequência do longo período de agitação social e da tensão política entre o Congresso Nacional – controlado pela oposição – e o presidente socialista Salvador Allende. Essa situação foi estimulada por uma guerra econômica ordenada pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon. O regime do general Augusto Pinochet, que chegou ao poder devido ao golpe, ficou célebre por ter desaparecido com, pelo menos, 3.200 dissidentes políticos, aprisionado 30 mil pessoas – muitas das quais sofreram tortura – e forçado cerca de 200 mil chilenos a se exilarem. A CIA, por meio do Projeto FUBELT, também conhecido como Track II, trabalhou secretamente primeiro para impedir a posse de Allende e depois para estabelecer as condições para o golpe que o destituiu.
María Claudia
Juan María Bordaberry foi eleito para o cargo de presidente do Uruguai em 1971, em meio à agitação social e à insurgência dos Tupamaros. A fim de aniquilar os militantes e acalmar os ânimos, ele planejou um golpe no próprio governo em junho de 1973, dissolvendo o Congresso e suspendendo a Constituição. Promoveu então uma implacável cruzada de contra-insurgência em que milhares de pessoas foram presas, torturadas e mortas ou desapareceram. O Office of Public Safety (OPS), em Montevidéu, uma divisão da U.S. Agency for International Development (USAID), trabalhando em estreita relação com a CIA, forneceu à polícia o equipamento, as armas e o treinamento para o qual foi criada. O OPS instituiu a tortura – já praticada pela polícia local – como uma medida rotineira e ensinou os militares uruguaios a infringir a dor com “refinamento” científico.
Apolonia
O general Alfredo Stroessner governou o Paraguai entre 1954 e 1989, após um golpe de Estado deflagrado contra o governo do presidente Federico Chávez. Os 35 anos de ditadura foram caracterizados por corrupção maciça, abusos endêmicos contra os direitos humanos e atos sistemáticos de violência contra “inimigos do Estado”. Embora Washington estivesse ciente das barbaridades flagrantes do governo de Stroessner, sua pose de “anticomunista” inflamado foi suficiente para que a administração Reagan conseguisse manter relações cordiais com ele, com a consciência relativamente limpa. Com o tempo, os excessos de Stroessner – que incluíam lavagem de dinheiro, contrabando e tráfico de drogas, ofensas sexuais e tráfico de seres humanos – atraíram a desaprovação internacional, se tornando tão explícitos que até mesmo o governo Reagan não conseguiu encobri-los.
Domitila
O governo norte-americano trabalhou arduamente com a direita boliviana para projetar o golpe de Estado de 1971 que colocou o coronel Hugo Banzer Suárez no poder. Foi instaurado um período de repressão impiedosa. Enquanto as elites dominantes controlavam bilhões em investimentos estrangeiros, 90% da população vivia em extrema pobreza. Além do apoio ao golpe, os EUA foram responsáveis pela formação do ditador boliviano na Escola das Américas, instituto do Departamento de Defesa dos EUA, na época localizado no Panamá, cujo objetivo oficial era propagar a “formação de contra-insurgência anticomunista”. Os manuais utilizados na escola – entre eles o KUBARK – foram liberados e publicados pelo Pentágono em 1996, fornecendo detalhes sobre os métodos de interrogatório coercitivos propagados pelos instrutores, que incluíam tortura, execuções sumárias e técnicas de desaparecimento.
Alceri Maria
O governo dos EUA autorizou em 1964 o envio de uma força-tarefa da Marinha para apoiar o golpe militar contra o governo de João Goulart no Brasil. Em dezembro de 1968, com o apoio financeiro e logístico dos EUA, foi instaurado o Ato Institucional número 5 (AI-5), medida provisória que legalizou os atos de censura e tortura no país. Depois do golpe de 1964, o Brasil passou por várias décadas de governos autoritários de direita. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) listou 434 mortes ou desaparecimentos forçados durante o governo militar. Isso porque a CNV não inclui na lista o assassinato de indígenas, camponeses, moradores de áreas periféricas e outros setores sociais vulneráveis, que já eram invisíveis antes de “desaparecerem” pelas mãos de agentes militares, milícias e pistoleiros contratados por latifundiários, ou pelos projetos de infraestrutura nacionais, como abertura de estradas e construção de usinas.